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Entrevista a Filipe Faísca

Entrevista a Filipe Faísca

31 Ago, 2021

Irreverente, criativo e observador, Filipe Faísca tem os pés mais assentes na terra do que os seus desfiles deixariam adivinhar. Hoje o caminho da marca é feito no atelier, longe das passerelles, mas engana-se quem acha que a criatividade foi esquecida.


Texto de Margarida Brito Paes

A enorme janela, que atravessa toda a largura do nº 95 da Calçada do Combro, deixa quem passa na rua ver Filipe Faísca a trabalhar. A porta abre-se e são umas escadas estreitas que nos levam até ao atelier, pejado de recordações. Do lado direito velas acesas a Nossa Senhora, na parede zips metálicos, cartas caligrafadas e pequenos tesouros indecifráveis de décadas de carreira. Qual foi o melhor momento de todos? «Pode parecer um clichê, mas para uma pessoa que sempre se sentiu inadaptada, não há nada mais gratificante que receber um prémio», conta-nos Filipe Faísca referindo-se aos dois Globos de Ouro que venceu. Antes de lá chegarmos o criador levou-nos numa viagem de memórias, que se estendeu de Moçambique, onde nasceu, até Lisboa, de onde não se vê a partir.

Lembra-se da primeira peça de roupa que criou?
Lembro-me. Foi um fato de banho. Na altura era muito difícil encontrar jersey, porque as lojas que existiam, em Beja, nunca tinham jersey. Portanto, eu fazia viagens às feiras porque alguns vendedores que tinha restos de confeção de fábrica. Foi aí que consegui comprar, pela primeira vez, jersey de algodão. Comecei por fazer uns fatos de banho para umas amigas.

Como era esse primeiro fato de banho?
Era verde-água, porque eu tingia a malha. Era um maillot clássico com as costas abertas. Mas de uma das alças vinha um fio de búzios que dava a volta à cintura e caia numa ponta. Uma coisa muito naïf, com búzios que apanhava na praia.

Como é que crescer em Beja, numa realidade provinciana, com uma enorme escassez de acesso a produtos e materiais, o influenciou em termos criativos?
Agora eu posso-lhe dizer que de era escasso, mas para mim, na altura, era o que existia. Eu vivia com o que existia. Já existiam matérias na minha cabeça que eram repescadas de coisas que a minha mãe fazia, outras coisas que vinham de África, outras que via, algumas que me passavam pela mão, como por exemplo o linho, que era uma coisa que existia muito lá em casa. A minha mãe também fazia muito crochet, mas gostava de fazer em materiais que não eram os normais. Eu andava sempre à procura de coisas nas lojas, que muitas vezes ainda tinham stock de coleções antigas, e eu era muito influenciado pelos tecidos antigos. Lembro-me que ao pé de minha casa existia uma velhota, a quem chamávamos velha dos bonés, e ela na altura áurea de Beja - em que havia muita pobreza, existiam pessoas que não tinham sapatos- vendia as coisas a prestações com umas senhas de dois escudos. Entretanto, o negócio foi decaindo e ela ficou com muito stock. Era uma loja pequenina e ela tinha tudo amontoado. Eu ia lá todos os dias e, a pouco e pouco, fui ganhando a confiança dela e comecei a ajudá-la a arrumar aquelas coisas. E o facto de ir arrumando fez-me descobrir cada vez mais coisas. Encontrei tecidos extraordinários e fui-lhe comprando. A moda é muito cíclica, hoje em dia aqueles tecidos ainda seriam fabulosos.

O que fez com esses tecidos?
Fazia roupa para pessoas amigas. Quando vim para Lisboa, para a António Arroio, e no último ano fizemos o primeiro desfile, eu usei tecidos desse stock de tecidos dos anos 50.

Qual é diferença entre o processo criativo dessa altura, em que ainda não existia uma marca, nem expectativas, nem pessoas a depender do seu trabalho, para o processo de hoje? O que ainda permanece desses tempos de maior liberdade?
Há coisas que ainda permanecem, acho que o gosto, o fascínio e a mensagem do desfile. A mensagem que não é visível, aquilo que queremos comunicar, mas não tem palavras, tem sensações, tem matéria. A mensagem é uma coisa que se constrói, mas que a forma de se expressar é ao nível do indizível. É algo que se vai construído aqui muito no atelier, através da música, dos materiais, de uma ideia primaria, do tipo de mulher que se quer criar para aquela coleção.

Como se transporta o inatingível que mora dentro de nós, para algo concreto que transmita algo ao público?
Esse processo para mim é muito rápido, sou muito sensorial, para mim é muito fácil traduzir a matéria, no sentido em que tudo fala e tudo se exprime. Eu sou um bocadinho tradutor da matéria, no sentido em que traduzo aquilo que os tecidos transmitem. Eu não defino muitas coisas, eu deixo que elas vão surgindo. Vejo uma matéria e apaixono-me por ela e através dessa matéria, vou ligando outras que para mim dialogam com essa. E vou criando assim, como se fosse um baralho de cartas.

Então o processo criativo começa sempre com o tecido?
Sim. Depois também há coisas que são comuns, por exemplo, acho que tenho sempre uma coisa qualquer dos anos 60/70, uma coisa de pop rock. Também há sempre umas divas que se vão misturando nesta história, que é a minha história. A Jane Birkin, a Catherine Deneuve, há assim umas mulheres do cinema e da música, que estão sempre presentes. Não sei bem porquê, mas sempre me influenciaram muito, mais do que como referência de beleza, como um tipo de mulher.

Todas as referências de que fala são muito dos anos 60 e 70, como é que se traz esse pedaço de História para uma criação atual?
A moda é muito cíclica, e não existe futuro sem passado, e sem presente. Nós conseguimos ter uma visão que nos transporta para imensas de casas diferentes. Temos muitos filtros em que nos podemos inspirar, e só nós hoje no presente é que conseguimos misturar tudo. Essa capacidade de associação é que faz com que surjam coisas novas. Isto é ir ao passado mas, ao mesmo tempo, estar no presente. Olhar para o que está a acontecer neste momento, com aquilo que nos influencia e as grandes questões da atualidade. Neste momento não podemos esquecer a questão da mulher, dos negros, são coisas que estão na ordem do dia. Quem vive hoje tem de lidar com estas questões. Há criadores que são mais intervencionistas que outros. Eu não sou muito intervencionista, mas sou muito atento, as coisas chegam-me às mãos por outros meios. Às tantas estou a lidar com o problema, sem que o tenha colocado num dos tópicos da coleção. Isto porque eu me influencio muito na vida do dia a dia, eu preciso da rua.

Como é que moda pode ser política?
É tão fácil quanto isto: nós somos políticos. Nós enquanto pessoas somos políticos, por isso o que vestimos é político.  É muito fácil que a moda seja política, que seja um instrumento de mensagem.

O que ainda existe de África nas suas criações?
A minha chegada a Beja, foi porque os meus pais acharam que o mais parecido com África era o Alentejo. Enganaram-se redondamente. Nós somos quatro irmãos, e os nossos pais continuaram a querer reproduzir a vida que tínhamos em áfrica. Portanto tínhamos uma casa grande, um carro grande, andávamos 120km para ir à praia, que era o que fazíamos em África. As portas e janelas estavam sempre abertas, e aquilo era uma casa de doidos, para aquela gente da terra. Havia festas todos os dias. Era uma coisa impensável numa terra em que as janelas nunca se abriam.  A forma como se vivia, a forma como a minha mãe se vestia, que usava os mesmos padrões que estavam nas cortinas.

É necessário passar por esse lado extravagante e fora da caixa, para chegar a este lugar onde trabalha para clientes, por medida, e inovar? É preciso ter esse mundo para abordar o clássico de uma forma que não seja chata?
É preciso, sobretudo temos de ter condimento. O clássico tem de ter o condimento certo. Eu mantenho a capacidade de estar a fazer uma coisa clássica, mas de a conseguir desconstruir, para a desmontar, para lhe dar um lado moderno, para que as pessoas não pareçam que saíram de um museu.

Como foi deixar de apresentar coleções na ModaLisboa, para se dedicar apenas a este trabalho de atelier?
O sair da ModaLisboa foi uma tristeza. Essa componente do desfile e da coleção, era onde eu dava o máximo da minha parte criativa, porque estava a criar para uma mulher ideal, que era eu que escolhia. Claro que já muito orientado para as minhas clientes, porque quando avançamos neste caminho vamos compreendendo muito melhor o mercado. Ao deixar de fazer ModaLisboa, aquele exercício de libertinagem e de puder fazer o que me apetece perdesse um bocado. As razões da saída foram monetárias. Neste momento o que fazemos é trabalho por medida para clientes, e temos imenso trabalho. Isto não quer dizer que não volte a fazer ModaLisboa, porque de facto aquela componente da mensagem, do espetáculo e do contacto com o público me faz sentido.

Uma das coisas que era sempre marcante nos seus desfiles eram os sapatos. Qual é para si a importância do calçado?
É total. Os sapatos para mim são a cereja no topo do bolo. Os sapatos definem o andar, definem a perna, para mim as pernas são o top no corpo da mulher. Adoro pernas.

Gostaria de ter uma linha sua de sapatos?
Adorava, mas aí gostaria de ter tanto para homem como para senhora. Gosto imenso de sapatos de homem.

Como seriam os sapatos Filipe Faísca?
Seriam sempre um bocadinho retro, sempre com uma grande preocupação no conforto. Mas se calhar até me ia surpreender com o que que pudesse resultar. Uma coisa é aquilo que nós queremos e outra é aquilo que acontece, porque entramos dentro de uma certa linguagem e isso leva-nos a outras coisas. Iria sair surpreso de certeza.


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