Irreverente, criativo e observador, Filipe Faísca tem os pés mais assentes na terra do que os seus desfiles deixariam adivinhar. Hoje o caminho da marca é feito no atelier, longe das passerelles, mas engana-se quem acha que a criatividade foi esquecida.
Lembra-se da primeira peça de roupa que criou?
Fazia roupa para pessoas amigas. Quando vim para Lisboa, para a António Arroio, e no último ano fizemos o primeiro desfile, eu usei tecidos desse stock de tecidos dos anos 50.
Há coisas que ainda permanecem, acho que o gosto, o fascínio e a mensagem do desfile. A mensagem que não é visível, aquilo que queremos comunicar, mas não tem palavras, tem sensações, tem matéria. A mensagem é uma coisa que se constrói, mas que a forma de se expressar é ao nível do indizível. É algo que se vai construído aqui muito no atelier, através da música, dos materiais, de uma ideia primaria, do tipo de mulher que se quer criar para aquela coleção.
Esse processo para mim é muito rápido, sou muito sensorial, para mim é muito fácil traduzir a matéria, no sentido em que tudo fala e tudo se exprime. Eu sou um bocadinho tradutor da matéria, no sentido em que traduzo aquilo que os tecidos transmitem. Eu não defino muitas coisas, eu deixo que elas vão surgindo. Vejo uma matéria e apaixono-me por ela e através dessa matéria, vou ligando outras que para mim dialogam com essa. E vou criando assim, como se fosse um baralho de cartas.
Sim. Depois também há coisas que são comuns, por exemplo, acho que tenho sempre uma coisa qualquer dos anos 60/70, uma coisa de pop rock. Também há sempre umas divas que se vão misturando nesta história, que é a minha história. A Jane Birkin, a Catherine Deneuve, há assim umas mulheres do cinema e da música, que estão sempre presentes. Não sei bem porquê, mas sempre me influenciaram muito, mais do que como referência de beleza, como um tipo de mulher.
A moda é muito cíclica, e não existe futuro sem passado, e sem presente. Nós conseguimos ter uma visão que nos transporta para imensas de casas diferentes. Temos muitos filtros em que nos podemos inspirar, e só nós hoje no presente é que conseguimos misturar tudo. Essa capacidade de associação é que faz com que surjam coisas novas. Isto é ir ao passado mas, ao mesmo tempo, estar no presente. Olhar para o que está a acontecer neste momento, com aquilo que nos influencia e as grandes questões da atualidade. Neste momento não podemos esquecer a questão da mulher, dos negros, são coisas que estão na ordem do dia. Quem vive hoje tem de lidar com estas questões. Há criadores que são mais intervencionistas que outros. Eu não sou muito intervencionista, mas sou muito atento, as coisas chegam-me às mãos por outros meios. Às tantas estou a lidar com o problema, sem que o tenha colocado num dos tópicos da coleção. Isto porque eu me influencio muito na vida do dia a dia, eu preciso da rua.
É tão fácil quanto isto: nós somos políticos. Nós enquanto pessoas somos políticos, por isso o que vestimos é político. É muito fácil que a moda seja política, que seja um instrumento de mensagem.
O que ainda existe de África nas suas criações?
A minha chegada a Beja, foi porque os meus pais acharam que o mais parecido com África era o Alentejo. Enganaram-se redondamente. Nós somos quatro irmãos, e os nossos pais continuaram a querer reproduzir a vida que tínhamos em áfrica. Portanto tínhamos uma casa grande, um carro grande, andávamos 120km para ir à praia, que era o que fazíamos em África. As portas e janelas estavam sempre abertas, e aquilo era uma casa de doidos, para aquela gente da terra. Havia festas todos os dias. Era uma coisa impensável numa terra em que as janelas nunca se abriam. A forma como se vivia, a forma como a minha mãe se vestia, que usava os mesmos padrões que estavam nas cortinas.
É preciso, sobretudo temos de ter condimento. O clássico tem de ter o condimento certo. Eu mantenho a capacidade de estar a fazer uma coisa clássica, mas de a conseguir desconstruir, para a desmontar, para lhe dar um lado moderno, para que as pessoas não pareçam que saíram de um museu.
O sair da ModaLisboa foi uma tristeza. Essa componente do desfile e da coleção, era onde eu dava o máximo da minha parte criativa, porque estava a criar para uma mulher ideal, que era eu que escolhia. Claro que já muito orientado para as minhas clientes, porque quando avançamos neste caminho vamos compreendendo muito melhor o mercado. Ao deixar de fazer ModaLisboa, aquele exercício de libertinagem e de puder fazer o que me apetece perdesse um bocado. As razões da saída foram monetárias. Neste momento o que fazemos é trabalho por medida para clientes, e temos imenso trabalho. Isto não quer dizer que não volte a fazer ModaLisboa, porque de facto aquela componente da mensagem, do espetáculo e do contacto com o público me faz sentido.
É total. Os sapatos para mim são a cereja no topo do bolo. Os sapatos definem o andar, definem a perna, para mim as pernas são o top no corpo da mulher. Adoro pernas.
Adorava, mas aí gostaria de ter tanto para homem como para senhora. Gosto imenso de sapatos de homem.
Seriam sempre um bocadinho retro, sempre com uma grande preocupação no conforto. Mas se calhar até me ia surpreender com o que que pudesse resultar. Uma coisa é aquilo que nós queremos e outra é aquilo que acontece, porque entramos dentro de uma certa linguagem e isso leva-nos a outras coisas. Iria sair surpreso de certeza.