Entrevista de Joana Ribeiro para a Portuguese Soul e Solo Number
"São amigas do género não se sabe onde começa uma e termina a outra, embora Joana seja mais coração e Filipa razão. Ainda se riem à desgarrada das piadas que mais nenhum colega do liceu percebia e não é como se tivessem ficado por aí porque continuam a insistir em fazer parte da vida uma da outra, mesmo depois de uma briga sem explicação ou quando a Pipa não atende os ininterruptos telefonemas de Joana em Facetime. Hoje sentam-se à mesa da casa da atriz com um bolo de chocolate a dividir, tal como dividem tudo, as inseguranças, as conquistas e as piadas, claro. A Joana, Filipa gaba-lhe a hipergenerosidade, já a amiga gostava de lhe entrar pela cabeça adentro. Encontram-se na estranheza".
FD - Lembras-te de um trabalho que fizemos no 11º ano para a área de projeto. Decidimos fazer um filme pseudoartístico, valeu-nos um 20. Lembras-te disto?
JR - Até há dois anos quando tinha de preencher fichas de inscrição ou assim eu escrevia que era estudante, sempre. Há muito aquela coisa dos atores têm que estudar e têm que estar teatro e fazer os três anos de Conservatório e é uma coisa com a qual eu lutei muito nos primeiros anos. Ainda há um certo estigma sobre quem começa em novelas e que eu acho que é completamente errado, porque talento é talento e trabalho é trabalho. Acho que ser ator é uma junção de fatores. Mas acho que ainda não houve assim um momento ‘eu sou atriz.’ Para mim ser atriz é uma constante aprendizagem, mais relacionada com aquela coisa que estamos a falar do estar interessado, interessado em como é que o ser humano funciona. E isso é mais do que só ser atriz. É curiosidade constante pelo ser humano. Quem me disse isso foi a Maria João Luís, ‘ser ator é ser o espelho das pessoas que nos vão ver’. E é verdade: atores servem para isso, nós somos o espelho do público. Eu vou ao cinema ver um filme e eu conheço mais sobre mim própria e levanto questões sobre a humanidade por causa das personagens. Quando alguém diz que se identificou com uma personagem minha é uma felicidade tão grande. É a sensação de tocar alguém. E basta só uma pessoa.
JR - Eu acho que o primeiro projeto onde eu senti isso foi o filme do Terry Gilliam [O Homem que matou Dom Quixote] Acho que foi o primeiro projeto em que eu pensei, ‘OK não sou eu’. Estava loura, a falar inglês.
JR Se fores arquiteto, há arquitetos que se um dia conheceres ficas ‘wow’. Eu não sinto isso com todos os atores, mas com alguns. Lembro-me de conhecer o Adam Driver, tinha uma meia na cabeça porque estava a experimentar uma peruca, e com um aparelho falso nos dentes, e o Terry aparece ‘Joana, tens de conhecer esta pessoa, acho que se vão adorar’ e era o Adam. E eu tipo ‘Hiii’ [risos] Foi horrível. Eu tinha idealizado que o ia conhecer loira, incrível. O Terry sabia e então fez-me isso.
JR - Eu tinha 25 anos, tinha feito um filme antes desse, só tinha feito novelas e tinha feito a série Madre Paula que acabei nem uma semana antes de começar o filme do Terry. Portanto, estava exausta, tinha acabado de fazer uma série de época super complicada e exigente. Não tinha tido quase ensaios porque não tinha tido tempo. Estava num país diferente a trabalhar pela primeira vez numa língua diferente, com um sotaque. E a produção do filme em si foi bastante atribulada. Portanto, tudo isto fez com que fosse o projeto mais difícil que eu fiz até agora. O que fiz agora, se calhar, até pode ser mais difícil noutras partes, mas eu enquanto mulher, enquanto atriz, sou mais madura, portanto, já me consigo adaptar e proteger em certas situações.
JR - Eu projeto lá para fora por haver mais oportunidades. Acho que o que fazemos cá é incrível, há filmes portugueses espetaculares e realizadores portugueses com quem eu adorava trabalhar, mas há realmente muito pouca oferta. Há pouca procura do público português, há muita procura dos atores portugueses, que são muito bons também, mas depois num país onde se fazem se calhar 10 filmes por ano, é muito difícil todos os atores trabalharem em cinema. Se calhar, num ano, não há filmes com personagens para mim. Portanto, se eu quero continuar a fazer isto e continuar a sentir-me desafiada por este trabalho, o projetar lá para fora é algo que me permite ter mais opções. Não acho que talento seja o que nos falta. Acho que nos falta investimento e falta de interesse por parte do público.
JR - Somos muito pouco patriotas nesse aspeto. Eu lembro-me de estar na escola e não ter uma aula a ver filmes portugueses.
JR - Há atores geniais que fizeram filmes geniais e nunca foram para fora porque não quiseram. O ir para fora, não é sinónimo de se fazer coisas melhores. Faz-se muita porcaria lá fora também. [risos] Se tivesse de escolher entre fazer um projeto em Portugal ótimo e um projeto lá fora menos bom, mas que me pagassem muito melhor, preferia 1000 vezes fazer um projeto em Portugal. Pagaria menos mas artisticamente iria preencher-me muito mais. Ter trabalhado com o Terry abriu-me portas cá em Portugal. Lá fora, eu lembro-me de falar com casting diretors e realizadores e de dizer ‘é que eu nunca estudei’ e eles ‘mas não precisas, tu começaste a trabalhar, trabalhar é estudar’.
JR - Sim, e eu percebo. Eu adorava ter estudado, adorava, acho que me ia ter dado uma bagagem, nem que fosse para quando me sinto mais insegura pensar ‘Calma aí eu estudei’ está aqui dito que fiz o curso.
JR - É algo que vai sempre pesar e assusta-me falar com atores mais experientes que eu que me dizem ‘vai durar para sempre e só fica pior’ [risos] O que me custa mais não é tanto a minha expectativa, porque acho que a consigo gerir, mas a dos outros. Lembro-me que, por exemplo, na altura do filme do Terry eu estava em pânico que as pessoas soubessem que eu estava a fazer o filme, porque automaticamente põem uma expectativa em ti. Isso é o que me assusta mas ainda outro dia estávamos a falar disto, ‘a arte existe para ser vista’.
JR - Mas ao mesmo tempo, o que eu gosto mais do meu trabalho é a parte em que eu estou sozinha com a personagem. Porque sou só eu e a personagem, e é como conheceres um amigo estás tipo, ‘estou a gostar imenso de conhecer este amigo apetece-me ficar sozinha com ele’.
JR - É mesmo das coisas que mais me fascina nisso, porque eu nunca vou saber tudo o que há para saber sobre o ser humano e sobre mim. Há sempre coisas novas que tu descobres com as personagens também. Tu podes-te perder numa personagem, mas há sempre coisas que são tuas. A forma como tu vês uma personagem, como tu ‘atacas’ uma personagem à partida vem muito daquilo que tu és enquanto pessoa.
JR Há muitas personagens que eu adorava encarnar. Gena Rowlands em A Woman Under the Influence, Isabelle Huppert em La Pianiste. Pela construção da personagem, por serem mulheres que desafiam a norma. De se calhar terem comportamentos que associas a homens. E ao mesmo tempo uma fragilidade que eu acho isso incrível na mulher. Às vezes é um bocado menosprezada a fragilidade, mas eu acho que das coisas mais incríveis que existe e ter essa predisposição para ser frágil e mostrar fragilidade é dos sinais de maior coragem que existe. Adorava fazer um filme tipo Apocalipse Now mas com mulheres. Há ali um lado de viver no limite.
JR O Joker... Eu não gostei do Joker. Porque achei que havia uma grande necessidade de justificar, porque é que ele era mau. Ele é só mau. Ele pratica a maldade aleatoriamente e é um agente do caos.
JR Eu gosto do facto de esta profissão ser um desafio constante, que é o que me aflige também. Adorava que isto fosse fácil. Eu acordava e diziam-me ‘tens estes três guiões de realizadores conceituados e todos querem trabalhar contigo e vais conseguir fazer todos ao mesmo tempo’. Eu sonho com isso, mas ao mesmo tempo sei que ia ficar hmm... Eu sou mais agente do caos também. Estou constantemente a desafios e arranjar dificuldades para mim própria.
JR - É sempre balançado. Agora no Glória, eu estava a falar com o Tiago Guedes, realizador, e estamos a falar sobre a personagem e facto de ela ser polaca, se fazia sentido ter sotaque. E ele disse ‘olha nenhum dos atores vai ter sotaque, a não ser os que são realmente do país e o Albano, mas se quiseres e se achares que faz sentido, trabalhamos nisso, mas também se não quiseres, não tem mal’. E eu decidi que queria ter sotaque. Porque a mim isso não só acrescentou trabalho, como também uma camada à personagem.
JR A parte mais difícil para mim é quando tens de dizer o teu nome, altura, de onde és. A parte que mais odeio. Sou capaz de fazer uma self tape em 5 minutos, essa parte eu faço 10 vezes [risos] A coisa mais odeio é perguntarem-me ‘fala sobre ti’.
JR - Eu prefiro que me digam para encarar algo. Por exemplo, nesta sessão para a Solo encarei a diva no hotel.
JR - Eu acho que chorava. E ria ao mesmo tempo.
JR - É engraçado porque a self-tape em que sinto que fui mais eu própria fui para o Glória. Quando estamos a fazer a preparação, o Tiago Nunes deu-me um resumo da personagem. Final da década 60, guerra fria, Portugal, personagem que vive numa aldeia, que se apaixona, que nunca foi a Lisboa. E eu fiz algo que fazia muito quando estávamos chateadas, que era eu imaginava discussões em frente ao espelho. Ainda hoje faço isso. Sempre que tenho uma conversa importante para ter com alguém eu treino sozinha. Lembrei-me que fiz isso quando estava a fazer a self tape. Pus um espelho, o telemóvel aqui, e era um plano sequência estático em que me vias a mim a ver o espelho. E cheguei, comecei a dançar uma música que falava de liberdade e falava de liberdade de pensamento, pus um batom vermelho e depois imaginei como se estivesse a falar com ele. A meio do take dou um beijo no espelho e começo a limpar o batom e começo a ver o meu reflexo e a pensar que isto não sou eu, não está a acontecer, é uma desilusão. E aconteceu de forma super natural porque eu sempre fiz isto e é uma coisa que achei que esta miúda também faria.