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Rooted: entrevista a Gisela João

Rooted: entrevista a Gisela João

21 Out, 2021

Conheça a nova narradora do programa Portuguese Soul


Uma entrevista de Lígia Gonçalves para a revista Portuguese Soul.

Numa entrevista à Blitz (a Portuguese music magazine), em 2018, disseste: "eu não me consigo esquecer de onde é que eu venho". Por isso, nesse sentido, perguntava-te, onde é que estão as tuas raízes?
Essa é boa. Mas, é verdade e eu penso nisso todos os dias: eu não me consigo esquecer de onde é que eu venho. E isso funciona para o bem e para o mal, porque às vezes estares demasiado presa também te condiciona a seguires novos caminhos. Mas, quando eu digo isso, gosto sempre de olhar para o lado bom das coisas. E digo-o porque eu fui muita coisa: eu trabalhei em lojas de roupa; eu trabalhei na feira... E tenho muito orgulho naquelas gentes da feira, tenho muito orgulho nas gentes das terras pequenas. Eu sou de Barcelos (a town in the northern region of Portugal, with circa 120,000 people), e tenho muito orgulho da forma como as coisas são feitas em Barcelos, porque, para o bem e para o mal, sendo uma cidade longe do centro, ali as coisas – como se costuma dizer de grosso modo – saem do pelo. E eu gosto disso, porque com a profissão que eu tenho é muito fácil iludires-te. E eu não quero nunca me tornar naquela pessoa – e, atenção, não estou a dizer que essas pessoas são mais fúteis, ou menos fúteis – que não sabe quais são as prioridades na vida. Por isso, eu não consigo, não consigo, esquecer-me de onde venho.

Sentes que as raízes nunca nos deixam?

Não, nunca nos deixam. Mas é o caminho que fazemos que te leva à pessoa que és hoje. E por isso é que acho que temos de ter orgulho do nosso caminho. Porque se tivesses tido outro caminho, não eras essa pessoa. E por isso é que eu digo que não me esqueço de onde venho, porque eu sou a pessoa que sou e canto da forma que canto, por causa desse caminho todo que foi a minha vida. E é só porque tive essa vida que canto assim, se não cantava de outra forma, porque sentia as palavras de outra forma…

Mas, apesar disso, ao longo da vida, também vamos sempre criando raízes, ou, se preferires, expandindo as nossas, não te parece?   
Sabes que o nome do meu disco novo, Aurora, está muito relacionado com esta pergunta que me fizeste. Eu escolhi o nome Aurora porque adoro, adoro o significado da palavra. E adoro porque eu acredito que todos os dias, quando acordas, se te apetecer ser outra pessoa – exatamente o oposto daquilo que foste no dia anterior – tu podes. E acho que essa oportunidade é uma oportunidade que nos é dada e nós não fazemos muito uso dela. Só quando situações limite acontecem é que começamos a questionar-nos, mas depois, muitas vezes, quando as coisas ficam bem, esquecemo-nos disso. Mas, na verdade, tu todos os dias tens a oportunidade de te tornar noutra pessoa.

E agora olhando, digamos assim, para a nossa raiz coletiva, qual é que é para ti, a definição de alma portuguesa?
Ahhh, a definição de alma portuguesa. Eu não queria dizer isto que vou dizer, mas tenho de dizer. Eu acho que a definição de alma portuguesa é a saudade. Eu não queria dizer isto porque parece que evoca sempre uma certa carga, como se fôssemos tristes. Mas eu não consigo ver a saudade só como uma coisa triste. Eu acho que a saudade é muita coisa, é muito abrangente. E acho que a forma muito poética como vemos a vida é por causa desse sentimento de saudade que nos é inerente. De certa maneira, até acho que a nossa língua é mais rica por causa dessa sensação de respeito que a saudade nos dá.  

E achas que o Fado faz parte da alma portuguesa?
Acho. Aliás, não tenho dúvidas nenhumas. Mesmo aquelas pessoas que dizem que não gostam muito de Fado, eu tenho a certeza absoluta de que não ouviram o que deviam ter ouvido. Acho que o Fado vai para além da língua falada e escrita que é o português. Porque a linguagem do Fado faz parte de se ser português.

E em relação ao Fado que aí vem, que Aurora (her new, about to be released at any minute, studio album) é que aí vem?
Vem uma aurora. É a primeira vez que eu escrevo e que eu canto poemas escritos por mim. Porque nunca tive coragem de o fazer antes, sempre tive muito medo. E os meus amigos sempre a dizerem-me: "mas, porquê, porquê?". [Neste álbum] Eu compus músicas, escrevi músicas...

E porquê agora? Porquê nesta nova Aurora?
Porque foi um passo que eu tinha de dar. Quando lancei o meu primeiro disco (Aurora will be her third studio album. Gisela João was launched in 2013, and Nua in 2016), as pessoas diziam-me: "Ah, mas tu tens de ter repertório, tens de ter músicas novas tuas". E, honestamente, nunca liguei. Porque eu sempre tive o maior orgulho nas músicas que cantei, aquilo que eu cantei de outros foi sempre em género de homenagem àquelas pessoas. Porque eu acho tão bonito que uma música mais antiga consiga viver até hoje e consiga fazer uma miúda, como eu, senti-la e levá-la ainda a outras camadas mais jovens. Eu funciono aqui como um veículo. Mas, depois de fazer isso durante dois discos, comecei a sentir que tinha mais coisas para dizer, tinha melodias e tinha poemas na minha cabeça. E o Aurora nasce assim, com esta premissa de fazer uma coisa bonita e, sobretudo, muito honesta. Acho que nunca tive um disco que fosse tão meu. Aliás, eu também assino a coprodução do disco, em conjunto com o Michael [League, produtor dos Snarky Puppy], que é uma pessoa doutra área, doutro país, que não percebe a nossa língua. E, enquanto portuguesa, foi um trabalho incrível, esse de poder partilhar a nossa génese.

A Aurora é mesmo um novo dia?
É. A Aurora é um novo dia. É uma nova oportunidade. É um florescer. É como as flores que são as coisas mais fortes do mundo - como as mulheres - que nascem em qualquer lugar, aguentam tudo e mais alguma coisa, e continuam sempre de cabeça erguida e a florescer. A Aurora é isso. Ai, a minha Aurora.

E voltando ligeiramente atrás, ao passado, eu sei que já quiseste ser designer de Moda.
Na verdade, eu sempre achei que ia ser designer de Moda, porque a minha mãe costura, aliás, a minha mãe foi empregada fabril a minha vida inteira, e eu cresci no meio dos trapos. A música é que se foi sempre metendo à minha frente.

Sim, pelo que sei, a tua mãe trazia-te sacos com retalhos de tecidos da fábrica. E tu usavas isso para criar peças de roupa para ti. Achas que o teu amor pela Moda começou aí, dentro desses sacos?
Começou, tenho a certeza. Começou com eu ver a minha mãe com os papéis estendidos, na mesa da sala, a fazer moldes. Com eu ver a minha mãe na máquina de costura a costurar-nos a roupa, a roupa que eu ia vestir. Por exemplo, quando eu andava na escola e queria ter uma peça de roupa nova, bonita, que eu via que as minhas amigas tinham, eu não podia [comprar], mas podia chegar a casa e pegar naqueles tecidos que eu tinha e fazer coisas novas. A Moda – e essas experiências - também me deram uma coisa para a vida que eu considero maravilhosa, e que eu gostava muito que toda a gente tivesse: a certeza de que se tu quiseres muito uma coisa, tu consegues. Por exemplo, não tens dinheiro para comprar aquele casaco maravilho, daquela marca, mas tu queres mesmo [aquele casaco]? Carago, uma tesoura, um rolo de malha, tu cortas e coses. Não vai ficar igual, não, mas também ninguém vai ter um igual ao teu. Ah, outra coisa que a minha mãe trazia da fábrica eram as revistas de tendências anuais, que eram enormes. E eu ficava fascinada a ver aquilo. A Moda para mim é um reflexo da minha personalidade, daquilo que eu sou.

E esses sacos também te permitiam expressares-te...

Muito. Muito. Não tens noção.

Deviam estar ali todo o tipo de tecidos, em todas as cores.
Todo o tipo... E nem eram só tecidos, a minha mãe também trazia aplicações, autocolantes, pompons, cristais…

Onde é que tu sentes que esses sacos de retalhos, tanto na altura, como agora, te permitiam, e te permitem, chegar?
Isso é uma boa pergunta. Sinto que me permitem chegar ao outro, mas, principalmente, permitem-me chegar a mim mesma.

De certa forma, os retalhos e aqueles sacos são um espaço de liberdade, não é?
É! Por exemplo, muito raramente, eu subo ao palco com um look que está já pensado há uma semana e com o qual eu não tive de me preocupar mais. É impossível. No próprio dia ainda estou indecisa. Por isso mesmo, eu viajo sempre com trapos, com retalhos, com pedaços de peças. E, claro, tesoura, agulha e linhas. Mas, sempre, sempre, sempre. E, às vezes, antes do concerto, dependendo do meu mood, eu estou a acabar um vestido, ou estou a alterar qualquer coisa.

Bom, não foste formalmente designer de Moda, mas continuas a desenhar e a criar roupa para ti. Achas que a Moda para além de ser um espaço de liberdade, também te ajuda a expressares melhor a tua identidade?
Claro, claro que sim. Daí permitir-me a ligação com o outro, porque eu represento-me melhor. É mais uma coisa para além da minha forma de estar, ou da forma como eu falo. A minha imagem também fala, também me mostra, também me dá a conhecer.

Mais especificamente, há um acessório que eu sei que tu adoras: sapatos. E aliás, tu até gostas de cantar descalça, mas adoras sapatos. Porquê?
Adoro sapatos. Repara, eu ando de sapatilhas para tudo e mais alguma coisa, mesmo sendo muito baixinha, aliás quase não chego às prateleiras aqui de minha casa (risos). Mas, como gosto de usar saltos altos, cheguei a um compromisso e pensei assim: eu posso entrar de saltos altos no palco, mas posso descalçá-los quando eu quiser e posso calçá-los outra vez se eu quiser. E também posso voltar ao palco com as minhas sapatilhas. Na verdade, é o que me apetece. Eu detesto é estar presa.

Tal, como a roupa, os sapatos também nos representam?
Exatamente. E acho que esta história que te vou contar, também teve muita influência na minha relação com os sapatos. A minha avó e a minha mãe, lembro-me que tanto uma como a outra me diziam: “olha sempre para os sapatos”. E os sapatos para mim continuam a ser aquilo que me dita o lugar.

Os sapatos contam-te histórias?
Ai, totalmente. Os sapatos ajudam-me a posicionar aquela pessoa num determinado lugar.

Pegando nessa tua ideia, literalmente, os sapatos caminham connosco até aos vários lugares. Talvez por isso, quando gostas muito de uns sapatos, seja até difícil descalçá-los…
Olha, eu tenho umas sapatilhas ali dentro (levanta-se e caminha pela casa, até ao closet, para as procurar) que te vou mostrar. Essas foram as sapatilhas que eu usei nas primeiras fotos do meu primeiro disco, que eu usei nos meus primeiros concertos. Andaram comigo na estrada. Elas estão podres (continua à procura), e até houve uma altura que pensei em deitá-las fora, mas não consegui porque sempre que olho para elas penso, "está aqui a minha história".


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